quinta-feira, 2 de maio de 2013

AS PALAVRAS

 



 


Se um dia na rua te perguntassem, tu saberias responder?
Quem são, de onde vêm, porque te aparecem no meio da noite em sonhos, primeiro tocando os lábios,  depois ganhando asas e um corpo translúcido, girando em círculos, subindo, subindo rumo a um céu que existe para lá das janelas. Atravessam as cortinas de linho, umas atrás das outras, como só as criaturas do ar sabem fazer e vão.
Num voo organizado separam-se do teu corpo e tornam-se folhas coloridas na brisa da madrugada.
Acordas.
Não percebes.
Nunca o poderás fazer realmente.
São mistérios que nenhum oráculo poderá alguma vez desvendar.






Seres independentes, nascidas das primeiras águas do mundo inicial onde o homem era apenas uma lembrança de futuro, percorreram milénios até chegarem às tuas mãos.
E tu tocas o seu corpo nu, puro, intacto, definido, silencioso. E elas cedem ao encanto e iniciam os primeiros passos do bailado. Uma, outra, em par, a três, a sete. Podem não ter fim. Combinações e mais combinações que o coração comanda.Vão-se misturando, sem medo, porque acreditam em ti e na doçura dos teus dedos e na tranquilidade dos teus olhos, habituados à espera, conhecedores natos dos ritmos caprichosos daqueles que não pertencem a ninguém, só a si mesmos. E elas são assim. Não há espaço para artíficios, máscaras, pintura, palco, luzes, nada além da sua nudez estampada diante do teu rosto.
Porém, entre tanto equilíbrio de formas e sentidos há sempre uma excepção. Na multidão que formam existe sempre uma delas que quer mais, que está farta da rotina, do que é quotidiano.
E então acontece: foge da cena e puxa-te pelo braço, aperta-te a mão e leva-te para muito longe.
Atravessam longas florestas, sobem às mais altas montanhas, mergulham nos rios, nos mares, viajam de barco, de comboio, por entre cidades fantásticas onde o sorriso das crianças é da cor do arco-íris e ilumina, com raios incríveis todas as casas, todas as praças, todos os jardins, todas as pessoas, todos os marcos históricos da humanidade.

Ela leva-te e tu deixas-te ir, sem amarras, livre, flutuando sobre os telhados, sem peso, com uma sensação de liberdade maior.


( Lembras-te dos quadros de Chagall? Aquelas figuras  humanas  abraçadas, suspensas sobre as aldeias, voando ao som de violinos e violoncelos etéreos, misturadas com os animais do campo?
Consegues ver?

As minhas últimas viagens têm sido assim.
Talvez seja a minha imaginação. Não sei. Não tenho certeza alguma.Sinto somente o calor da sua mão  tatuado na minha, como um selo muito antigo. Sim.)

 Quando regressas, tu e ela, já o bailado terminou e todas as meninas pequenas adormeceram na folha branca, encostadinhas umas às outras, com os seus corpos  magros e contornados, como se pretende que seja, tratando-se obviamente de belas bailarinas em início de carreira.






Olhas o cenário e despedes-te.
Mas, no preciso momento em que te preparas para fechar a porta, uma voz doce  aproxima-se de ti e sussurra aflita:
-Vem,  estão a chamar-te!
-Não as ouves?
(É ela novamente. Forte personalidade  a sua!Nem depois de uma viagem infindável me deixa ir. Vem, sem medo,  com uma certeza e uma determinação implacáveis.)
E eu páro e começo a ouvir.
É um sopro, um canto, uma melodia fina rente à madeira do chão, como um riozinho acabado de nascer, uma flauta de madeira na boca de um jovem pastor. Aquela sonoridade primordial dos oceanos.
Sentes a vibração tocar-te os olhos, os lábios, o rosto, movimentar os cabelos, percorrer a pele do corpo.
E percebes. Finalmente entendes tudo, como se uma clarividência fugaz preenchesse, naquele instante, todo o teu pensamento.
Pedem-te que fiques ou então que as leves contigo.
E tu pegas nelas ao colo e fechas finalmente a porta.
Na rua, uma lua gigante, branca, branca. Parece-te um lago parado no céu.
Abres os braços e lança-as ao espaço.
E elas voam, voam, voam até se perderem entre as constelações mais distantes do céu. 




Aman





 

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