Se um dia na rua te perguntassem, tu saberias responder?
Quem são, de onde vêm, porque te aparecem no meio da noite em sonhos, primeiro tocando os lábios, depois ganhando asas e um corpo translúcido, girando em círculos, subindo, subindo rumo a um céu que existe para lá das janelas. Atravessam as cortinas de linho, umas atrás das outras, como só as criaturas do ar sabem fazer e vão.
Num voo organizado separam-se do teu corpo e tornam-se folhas coloridas na brisa da madrugada.
Acordas.
Não percebes.
Nunca o poderás fazer realmente.
São mistérios que nenhum oráculo poderá alguma vez desvendar.
Seres independentes, nascidas das primeiras águas do mundo inicial onde o homem era apenas uma lembrança de futuro, percorreram milénios até chegarem às tuas mãos.
E tu tocas o seu corpo nu, puro, intacto, definido, silencioso. E elas cedem ao encanto e iniciam os primeiros passos do bailado. Uma, outra, em par, a três, a sete. Podem não ter fim. Combinações e mais combinações que o coração comanda.Vão-se misturando, sem medo, porque acreditam em ti e na doçura dos teus dedos e na tranquilidade dos teus olhos, habituados à espera, conhecedores natos dos ritmos caprichosos daqueles que não pertencem a ninguém, só a si mesmos. E elas são assim. Não há espaço para artíficios, máscaras, pintura, palco, luzes, nada além da sua nudez estampada diante do teu rosto.
Porém, entre tanto equilíbrio de formas e sentidos há sempre uma excepção. Na multidão que formam existe sempre uma delas que quer mais, que está farta da rotina, do que é quotidiano.
E então acontece: foge da cena e puxa-te pelo braço, aperta-te a mão e leva-te para muito longe.
Atravessam longas florestas, sobem às mais altas montanhas, mergulham nos rios, nos mares, viajam de barco, de comboio, por entre cidades fantásticas onde o sorriso das crianças é da cor do arco-íris e ilumina, com raios incríveis todas as casas, todas as praças, todos os jardins, todas as pessoas, todos os marcos históricos da humanidade.
Ela leva-te e tu deixas-te ir, sem amarras, livre, flutuando sobre os telhados, sem peso, com uma sensação de liberdade maior.
( Lembras-te dos quadros de Chagall? Aquelas figuras humanas abraçadas, suspensas sobre as aldeias, voando ao som de violinos e violoncelos etéreos, misturadas com os animais do campo?
Consegues ver?
As minhas últimas viagens têm sido assim.
Talvez seja a minha imaginação. Não sei. Não tenho certeza alguma.Sinto somente o calor da sua mão tatuado na minha, como um selo muito antigo. Sim.)
Quando regressas, tu e ela, já o bailado terminou e todas as meninas pequenas adormeceram na folha branca, encostadinhas umas às outras, com os seus corpos magros e contornados, como se pretende que seja, tratando-se obviamente de belas bailarinas em início de carreira.
Olhas o cenário e despedes-te.
Mas, no preciso momento em que te preparas para fechar a porta, uma voz doce aproxima-se de ti e sussurra aflita:
-Vem, estão a chamar-te!
-Não as ouves?
(É ela novamente. Forte personalidade a sua!Nem depois de uma viagem infindável me deixa ir. Vem, sem medo, com uma certeza e uma determinação implacáveis.)
E eu páro e começo a ouvir.
É um sopro, um canto, uma melodia fina rente à madeira do chão, como um riozinho acabado de nascer, uma flauta de madeira na boca de um jovem pastor. Aquela sonoridade primordial dos oceanos.
Sentes a vibração tocar-te os olhos, os lábios, o rosto, movimentar os cabelos, percorrer a pele do corpo.
E percebes. Finalmente entendes tudo, como se uma clarividência fugaz preenchesse, naquele instante, todo o teu pensamento.
Pedem-te que fiques ou então que as leves contigo.
E tu pegas nelas ao colo e fechas finalmente a porta.
Na rua, uma lua gigante, branca, branca. Parece-te um lago parado no céu.
Abres os braços e lança-as ao espaço.
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