"... como o naipe inútil de um tarot cujos destinos já tivessem sido fatalmente cumpridos" - pensa o homem, enquanto contempla a forma humana, ao abrigo do seu enorme guarda-chuva.
O homem acaba de sair do metro, olha para o céu e abre o guarda-chuva, isso é o primeiro, não vai estragar os sapatinhos de pele, e só depois repara na mulher que permanece em pé no passeio, como um farol, teimosa presença contra a maré incessante de cidadãos apressados que entram e saem da estação. Ela é magra, esbelta, de cabelos claros e olhos verde água. Veste cores pálidas e calça botas altas.
O homem pensa: "Que será aquilo que esses olhos vêm? Não será decerto, a mesma realidade que vêm os meus, nem poderia ser. Essa mulher tem o mar nos olhos e pode ser que nem ela tenha reparado nisso..."
E são os olhos da mulher, precisamente, que o guiam até à visão da fita, até apreender o contorno e significado dessa figura, até absorver esse espaço que separa este morto dos vivos. A chuva e a fita tinham feito parar a mulher ao pé desta paisagem urbana, impelindo-a hoje a considerar certas questões de teor metafísico, nomeadamente a morte, a finitude da vida, a fragilidade da memória humana, questões que noutro dia qualquer talvez não se teriam aninhado no seu espírito. As nuvens pretas, a chuva que começa a engrossar, tudo hoje predispõe a sua alma para isso. Sair do metro e encontrar-se de caras com isto. Não é azar? Não bastava já com este dia de ventos e águas irados?
"O que foi, já foi. Quem morreu aqui já foi pessoa e já deixou de o ser; a fita parece ser isso, não é...? Uma fronteira, uma linha entre os vivos e os mortos..." - pensa a mulher, ainda confusa, surpreendida, porventura angustiada. Será por isso, por causa da fita/fronteira, que os outros evitam olhar? Será por isso que ela não pode parar de olhar?
O homem olha para a mulher e acha-a muito bonita, pese a sua atitude solene e esse ar grave que paira sobre o seu rosto. Ainda distanciados pelo muro de pessoas apressadas, ambos olham para a figura de fita adesiva, olham para o espaço que limita o lugar da morte, quase como se olhassem para a tumba de um conhecido comum, num cemitério qualquer. O homem tira o chapéu.
A mulher, que já tinha reparado no homem durante o instante em que ele abria o guarda-chuva, repara novamente nele, desta vez singularizando-o, capturando as suas feições, sentindo uma espécie de solidariedade no seu gesto. Ambos contemplam agora um contorno humano que, pelo seu tamanho e proporções, só poderia pertencer a uma criança. Uma criança que imaginaremos geometricamente desmaiada, desengonçada, um braço por aqui, uma perna por ali, um pescoço demasiado virado para atrás. Uma criança, enfim, irremediavelmente partida, desvertebrada, inimaginavelmente fraturada, para sempre. Sem voz. Morta. Morta mesmo, isso poderíamos nós afirmá-lo mesmo que não soubéssemos o fatal desfecho.
A fita fala com essa fria clareza que a geometria da morte possui, essa mesma que está ausente quando tudo parece correr bem connosco, quando o sangue circula ordeiramente pelas nossas veias e nada faz pressagiar o desastre.
A fita é, como já foi pensado, primeiro pela mulher e depois pelo homem, a linha que separa o morto dos vivos. Apenas duas dimensões, altura e largura.
"... sim, mas como as duas dimensões podem ser eloquentes, até desgarradas...!" - reflecte o homem, arrepiado com essa geometria plana que a morte nos traz às vezes, especialmente quando nos surpreende no meio de um momento de vida.
E é verdade, acrescentamos nós, narradores omniscientes (ou quase), mas não por isso menos sensíveis ao expressionismo sublimado e minimalista da cena, à forma em que esta ausência doentia, este não-corpo, consegue ser quase tão corpóreo como o próprio corpo seria, caso tivéssemos chegado aqui ontem, no momento preciso da morte, em vez de atrasados, como aliás é costume entre os cronistas.
Pois é, a figura não tem curvas, como será fácil de compreender, porque a fita adesiva é assim, precisamente, recta, e não dá para mais: o leitor imagine a figura feita de pedaços de fita cortados à direito, técnica que confere à silhueta o seu ar caracteristicamente poligonal, esquemático, frio,policial: aquilo que, se fosse bem desenhado, seria composto seguramente de volumes e relevos, luzes e sombras, vales e colinas arredondadas - ó, curvas abençoadas da natureza...! - mais não é do que uma mão cheia de genéricas rectas, um relato truncado, uma vida acabada, uma página esquecida, um eco mudo, enfim.
Mas não vale a pena andarmos aqui com mais lamúrias. Noutras ocasiões utiliza-se o giz, que permitiria uma representação mais realista, mas neste caso o que se tinha à mão no momento do óbito era fita policial, amarela (como aliás manda o protocolo em qualquer investigação desta tipologia, isto é, em investigações que incluem o seu finalzinho violento e letal), e com essa fita, dizíamos, cortada al dente , fez-se o melhor que se pôde. Afinal, também não está escrito em parte nenhuma que os agentes da Polícia tenham de dar asas aos seus impulsos estético-expressivos durante a condução das suas pesquisas, não é verdade? Para estéticas, aliás, já existem os artistas, pelo menos aqueles entre eles que ainda se preocupam com isso.
O assunto da fita é meramente funcional, e prende-se apenas com a necessidade de registar volumetricamente o defunto, assim como com a disposição do corpo no momento do último suspiro - disposição esta que pode fornecer valiosa informação sobre a cadeia de eventos conducentes até o fatal desenlace e também sobre os eventuais indícios de criminalidade no caso investigado.
Sobre isso - ai! - nada sabemos, nem faremos por averiguar. A nossa história é outra.
Ora, a fita adesiva grita com esse grito mudo tão próprio das fitas adesivas. Sem volume, sem acústica. A fita fixa a figura ao chão. Essa é a sua função primária. Mas nesta manhã ventosa e húmida, a fita coloca também uma discordância na consciência dos transeuntes distraídos. Muitos deles passam sem saber bem (ou sem querer saber) o que esta fita significa e isso é um traço habitual entre os cidadãos das sociedades ditas modernas e individualistas, tribos urbanas que perderam todo sentido de pertença comunitária ao todo. Mas note-se bem que mesmo aqueles mais apressados sentem esta discordância, na angústia das suas pressas individuais, sentem a morte, espreitando como uma alegoria medieval, falando-lhes agoirenta desde a periferia das suas consciências, sussurrando-lhes subliminarmente, lembrando-lhes enfim a sua própria finitude.
O homem do guarda-chuva olha novamente para a figura imóvel da mulher entre a multidão fervilhante. O homem, mais dado ao exercício ocasional do cinismo, pensa por um momento na possibilidade de que a silhueta seja a obra de algum artista contemporâneo, decidido a provocar com a sua instalação uma reacção visceral à precariedade da existência entre os transeuntes. Já vimos coisas bem mais arrojadas! Mas o homem afasta a ideia, enquanto vai reparando novamente na mulher, que agora ajeita os seus cabelos molhados sob um lenço que tira do seu saco. É um momento subtil e belíssimo que ilustra todo o potencial encantamento do mais insignificante dos gestos considerados "femininos".
"Fraca protecção", pensa o homem, "para este dia de aguaceiros violentos, saíste de casa sem olhar antes pela janela, talvez o que tu gostas é de surpresas, bela moça, olhos de mar".
A visão da mulher assim, tão sem pressa, tão entregada à chuva, tão bela e vulnerável, atrai com força a atenção do homem. Aproxima-se da mulher, ganhando terreno entre o turbilhão de pessoas, oferece com gesto simples à mulher o refúgio partilhado do seu guarda-chuva. A mulher sorri amavelmente aceitando a protecção, sem falar. Ficam assim ambos, silenciosos, sozinhos no meio da onda de viandantes, olhando para esse cadáver ausente que só eles reconhecem como parte da paisagem e os outros fingem ignorar. A mulher fala finalmente:
MULHER: ... Estou a ficar triste, sabe porquê? Mas não terá um nome a criança, assim, tão cedo, o terá perdido...? A gente morre, e depois tudo é... assim... esquecido... Apagado da memória...? Não poderiam ter deixado um nome, ao pé da figura, mesmo que fosse escrito a giz no chão, caramba, custaria tanto escrever um "António" ou uma "Branca" ou um "Frederico", sei lá, com uma data, para a infortunada criatura poder ser lembrada?
O homem ouve o pungente parlamento da mulher, assentindo lentamente com a cabeça, sentindo cada palavra com gesto solene. Juntos sob a protecção do guarda-chuva, os seus corpos tocam-se mas os olhos ainda não se cruzam. Falam como cantores numa ópera, de frente para o público, mas sem terem ainda encontrado o olhar um do outro. Porém, sentem-se como envolvidos numa intimidade incipiente, feita da cumplicidade espontânea que eles, e só eles, sentiram dentro da contracorrente da massa indiferente.
Eles são as figuras que contam nesta paisagem. Todas as outras estão, em maior ou menor grau, mortas.
HOMEM: Repare em nós, por um momento: um homem e uma mulher, dois pontos fixos no meio desta multidão que passa indiferente pela figura desta criança. Alguns, na sua precipitação, profanam o lugar com botas lamacentas e nem reparam nisso. Será mesmo que não vêem, ou que não querem ver?
MULHER: Talvez não suportem ver... A morte não é coisa bonita. Eu fico sempre atrapalhada com as mortes. Até nos filmes acontece.
As palavras da mulher ficam no ar. O homem não ousa quebrar esse silêncio, precariamente partilhado, durante alguns segundos. A mulher pensa nesse silêncio como sendo de ambos e sente alguma paz. A partilha coloca uma surdina no ruído desta cidade sem alma.
As pessoas atravessam a rua sem descanso, como uma maré obstinada. A estação do metro, a escassos metros de distância, regurgita ciclicamente um novo grupo de cidadãos, e engole outros que nela vão caindo, sempre apressados, cinzentos. Também eles parecem mortos, como a criança, embora sejam mortos de uma morte menos definitiva.
HOMEM: Sabes...? Essa ideia do nome em giz... Tens razão. Neste mundo, a memória que os outros guardam de nós é a coisa mais duradoura a que podemos aspirar... Bom, essa é a minha opinião, pelo menos, mas não quereria ofender-te...
Quando ouve ao homem tratando-a por tu, a mulher vira a cabeça para ele, como surpreendida, mas também agradada, talvez aliviada. Os olhares cruzam-se e o homem sente um tremor verde atravessar o seu ser.
MULHER: ... Não me ofendes... pelo contrário. Estas coisas causam revolta, não causam? Eu, vendo um destino destes, só me apetece pensar numa dúzia de nomes de santos para começar a blasfemar aqui mesmo... Isto é coisa que um deus decente faça, diz-me então se não tenho razão, ceifar assim a vida de alguém que quase nem tempo teve de a desfrutar? Na face de coisas destas, acreditar num deus qualquer até parece uma acto irresponsável...
HOMEM: Concordo plenamente... E acrescento mais uma imagem, metáfora ou como a quiseres chamar... Se a vida é como um rio que vem desaguar no oceano da morte natural, este rio foi violentamente desviado do seu leito por forças caprichosas, as suas águas vertidas para sempre numa terra de ninguém...
MULHER: Tens jeito para tornar belas as coisas mais terríveis... nem imagino o que conseguirás fazer com as coisas belas da vida...
HOMEM: Obrigado. Mas muitos já falaram das vidas como rios, não é nada de novo. Voltando ao assunto da memória, repara que esta criança teve direito, pelo menos, a algumas flores. Ainda se podem ver lá alguns restos de pétalas sujas... está a ver ao lado da cabeça, ou melhor, do espaço que a cabeça terá ocupado?
MULHER: Sim, verdade. Até tenho arrepios de ver esse pescoço assim virado... Abençoada esta chuva que levou o sangue da criança... O sangue também me atrapalha muito, eu queria ter estudado medicina, mas desmaiava, não dava mesmo...
HOMEM: Ainda bem que eu não morro nem me esvaio em sangue com frequência... Lamentaria profundamente causar-te algum tipo de atrapalhação...
A mulher ri pela primeira vez nesta manhã e o verde que atravessa a alma do homem torna-se um branco vibrante, durante alguns segundos.
MULHER: Olha lá, parece que algum transeunte segurou a fita dessa coroa àquele sinal de trânsito, para ela não voar.... Alguém se lembrou de lembrar, vá lá....
HOMEM: ... E tu, tens nome?
MULHER: Tenho. Toda a gente tem nome... Até esses transeuntes sem nome têm o seu.
HOMEM: É bom saber que tens nome.
O homem está dividido entre o verde e o branco. Não sabe se conseguirá suster o olhar da mulher durante muito tempo. Nem sabe se conseguirá suster o guarda-chuva, de facto.
MULHER: Não queres saber?
HOMEM: ...O teu nome? Mais do que nada neste mundo...
MULHER: No entanto, não perguntas...
HOMEM: Não queria que por precipitação ou estupidez minha as coisas ficassem estragadas. As coisas todas têm o seu tempo. Prefiro ouvir o teu nome sem perguntar, num momento em que ouvir o som do teu nome não seja a resposta lógica à nenhuma pergunta, que ele apareça como vindo do além... que o teu nome venha como um presente que não esperava...percebes?
MULHER: Está bem, percebo. Mas eu tenho uma pergunta precipitadíssima e talvez estúpida...
HOMEM: Tenho certeza de que não será nem uma coisa nem a outra. Imagino que seja uma pergunta verde, ou branca, ou ambas coisas, tenho certeza disso.
MULHER: ...Verde? Por causa dos meus olhos...? E o branco...?
HOMEM: Não te preocupes, esta coisa das cores eu explico noutro momento... Se eu tentasse explicar agora não poderia segurar o guarda-chuva e ambos ficaríamos encharcados...
MULHER: Está bem. Quando saíste do metro, eu já estava aqui. Vi como abrias o guarda-chuva. Depois desapareceste entre as pessoas. Confesso que durante vários minutos esqueci-me completamente de ti. Depois vi-te de novo quando tiraste o chapéu. Diz-me... Reparaste antes na fita da criança morta, ou em mim?
HOMEM: Em ti. Foram os teus olhos que guiaram os meus até a fita, como dois faróis guiam um barco em perigo durante uma tempestade. Mas todo o tempo que passei aqui ao teu lado, pensava naquilo que os teus olhos estariam a ver... e em como isso seria belo, e gostei também muito quando tiraste o lenço e envolveste nele o teu cabelo, e pensei que irias apanhar frio, e também...
MULHER: ... Branca, o meu nome é Branca. Agora tira-me daqui, por favor. Quero um café bem quente. Chega de morte. E por favor, fecha o guarda-chuva, e conta-me essa coisa do verde e do branco, deixaste-me curiosa.
Sándalo Naranja